sábado, julho 26, 2008

::: Seja Ela Quem For :::
Tati Bernardi

Você olhou para o horizonte, eu querendo morrer com seus olhos azuis estragados, e me disse que o grande amor da sua vida já tinha passado.

Não podia me dizer o nome, não podia me dizer nada. Queria mudar de assunto e, pra variar, fez piadinhas idiotas para desfazer meu olhar de morte.

Pro inferno que você ia me deixar daquele jeito, eu precisava de nomes, eu precisava de motivos, eu precisava de cheiros, cores de calcinhas, comprimento de cabelos, pintinhas do dedão. Eu precisava sofrer até a última gota do sangue azedo que tinha me invadido e despertado minha obsessão.

Não se solta assim um verme "corroedor" de almas no ventre de uma mulher ciumenta e depois se pede mais água com gás pro garçom.

Eu precisava saber o que essa mulher formidável havia feito para merecer aquele seu olhar de devoção preguiçosa, algo entre o melancólico e o submisso, entre a saudade e o repúdio. O olhar que toda mulher sonha causar em um homem.

Eu precisava olhar com uma lupa para a bunda daquela vaca, aposto, aposto cem mil dólares que é dura. Certeza, só uma mulher muito gostosa enlouquece um homem a este ponto. E só uma mulher muito gostosa simplesmente dispensa um homem daqueles.

Não, nada disso. Ela é muito bem resolvida, isso sim. Ela até tem celulite e é um pouco flácida. Mas é daquelas mulheres chiques que sentam na beira do sofá com uma roupa-cara-despojada-para-ficar-em-casa e tomam vinho em taças gigantes. Ela tem um cachorro grande, tipo labrador, e faz carinho no pescoço dele enquanto pede para você escolher um disco. Ela tem uma vitrola, coloca Billie Hollyday e ri deliciosamente quando derruba um pouco de vinho no tapete felpudo branco, que combina perfeitamente com seu aconchegante apartamento clean de mulher em vias de se tornar bem-sucedida.

Ahhhhhhh se for isso, tá no papo. Aposto como você prefere um milhão de vezes o meu jeito de menina perdida, homem gosta de cuidar, não?

Ou será que é uma garotinha? Hmmmmm, estagiária, doce suor ginasial, pele dura, malícia ingênua, deslumbre inocente, meio burra sobre política, meio tapada para livros, só gosta dos rocks que estão na moda e associados a algum evento com patrocínio de celular. E música eletrônica, claro.

Bom, se for isso, você deve preferir o cd que eu gravei só com músicas antigas e boas para a gente transar quando você volta seus olhos para mim.

Ele fala uma ou duas coisas idiotas que me chamam a atenção apenas porque coisas idiotas sempre me chamam a atenção. De resto, não faço a menor idéia do que acontece fora da minha cabeça obsessiva em decifrar quem seria a mulher misteriosa.

Aliás, acabei de me lembrar da palavra mágica: mistério.

Fulana devia ser o mistério em pessoa. Dessas mulheres sérias, dessas mulheres que conseguem simplesmente não se interessar pelo mundo gritando existência lá fora e cagam para grupinhos felizes formados por suicidas em potencial que comemoram mais um dia de vida aceitando-se mutuamente.

A vaca era misteriosa, não tinha jeito. Mas uma mulher misteriosa ia rir daquele mala cheio de piadas ruins? Ela ia tomar banho enquanto ele faz xixi e arregaçar a perna para lavar com esmero cada cantinho e dobrinha da sua xoxotinha? Uma mulher misteriosa ia falar xoxotinha? Uma mulher misteriosa ia rir copiosamente durante duas horas do seu primeiro pum? E ia continuar mantendo a esportiva nos próximos puns?

Não, ela era fresca demais pra isso. E por isso ele ainda ama essa filha da puta, porque quando o homem respeita mesmo uma mulher, ele fica nervoso demais para ficar à vontade. Se bem que nervoso dá ainda mais vontade de soltar pum. Mas com ela o desgraçado devia segurar.

Mas será que é bom ficar sempre nervoso na presença de alguém? Colocar uma mulher muito no pedestal não significa não conseguir abraçá-la e viver sozinho?

Marília, ele me disse antes de eu descer do carro. O nome dela era Marília. E sorriu, vingando-se de todas as mulheres que já o haviam deixado perdido. Ele sabia que eu era o cachorro de mudança do cego em tiroteio.

Claro que passei a noite em claro escrevendo Marília no Orkut, no Google e repetindo seu nome estupidamente para meu cérebro, como se cada letra fosse mais uma peça igual da minha linha de montagem sem fim.

Marília podia ser mineira de BH, 25 anos, formada em odontologia, interessada em amigos e network. Marília podia ser uma artista plástica que faz uns passarinhos desinteressantes com papel colorido e fez um site brega para divulgá-los. Marilinha era garota de programa e topava dupla p. na bu e no c. E estava escrito assim mesmo no seu site. Marília passou em quarto lugar na Faculdade São Francisco em 2003, Marília era amiga da Mari, uma menina idiota cheia de amigas idiotas. Marília era o quinto lugar do concurso de poesia de Catanduva. Marília era dona de um currículo com experiência no pacote completo do Office 2005. Marília tinha dezesseis anos e um blog cheio de dúvidas sobre a vida. Marília, essas dúvidas vão continuar aí quando você tiver 40 anos, a diferença é que você aprende que não morre por não saber nada nesta vida. Marília era dona de uma pousada com seu marido gringo, no site da pousada tinha uma foto da Marília gorda e negra com seu marido magro e alemão. Marília era estudante da faculdade São Judas Tadeu, Marília era entrevistadora e artista, Marília era vocalista de uma banda só de mulheres, Marília deixou um recado no Orkut da sua amiga Ceci dizendo que sexta ela quer quebrar tudo na festa. Marília dos Santos Teixeira Nóbrega é cientista. Marília é Atlético Clube, universidade, faculdade, cidade, igreja, motel, mãe. Marília era alguém que dormia essa hora, enquanto minhas vísceras invejavam a sua ausência.

Marília, como todos os que fantasiamos merecerem um amor eterno e absoluto por serem perfeitos, não existia.

De tanto odiar Marília, eu amava Marília. De tanto fantasiar, de tanto tentar aniquilar minha existência, de tanto ver Marília em todas, de tanto não ver Marília, mas saber que ela está por aí, assim como a morte e as possibilidades de solidão, de tanto sentir Marília pisar em mim com salto agulha e me furar os olhos com seus cabelos fortes e lisos, de tanto esquecer Marília o tempo todo porque o tempo todo eu só pensava nela, eu resolvi fazer este texto e mandar a Marília tomar no meio do olho do cu dela. Seja ela quem for.

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